sexta-feira, 10 de junho de 2011

o húngaro de Guimarães Rosa

Eu sei que já fiz um post exclusivamente destinado a apontar a impossibilidade da língua húngara ser professada por qualquer estrangeiro dada a sua complexidade, estranheza e ininteligibilidade (rááá, agora quero ver algum húngaro falar essa última palavra! Doce vingança...)

No entanto, há pouco chegou a meu conhecimento um livro chamado Antologia do Conto Húngaro escrito por Paulo Rónai, falecido escritor nascido na Hungria e radicado no Brasil. O livro traz uma seleção de contos de escritores húngaros traduzidos para o português. Não tive a oportunidade de lê-lo até mesmo porquê creio que seja um tanto quanto difícil encontrá-lo por aqui em se tratando de um livro em português.

Mas o que chama a atenção desse livro é seu prefácio escrito pelo James Joyce tupiniquin, Guimarães Rosa. Inteligente pra dedéu, ele estudou um catatau de línguas.

Falava, segundo o próprio: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo. Lia sueco, holandês, latim e um pouco de grego. Entendia alguns dialetos alemães e tinha estudado a gramática do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês e do dinamarquês. É mole?

Bom, no supracitado prefácio, Guimarães Rosa se derrete em elogios ao idioma magiar. Vai aqui a transcrição. É grande e complicada, eu até pensei em encurtá-la, editá-la, mas cheguei à conclusão que seria uma falta de respeito, para dizer o mínimo, em se tratando de um texto tão fodásticamente articulado por um escritor tão fodásticamente foda:

“Disse já que o húngaro, por seu rico registro de vogais - que a caracterizam imediatamente - e da prevalência das claras sobre as surdas, dá-se como uma das línguas mais sonoras, musicais, em seu vozeio. Sonorosa, se bem que de ritmo fundamental muito enérgico, nela as seqüências de inflexões naturalmente modulam e fácil melodiam. De si concretizante, figurativa, imagista, encerra copiosa quantidade de onomatopéias. Sua gramática, parca, põe garra mais curta que a da emoção. Suas palavras nem sempre se fecham na racional fixidez conceitual explícita, na rigidez denotativa, antes guardam sob o significado uma ativa carga potencial, rudimentar, com o que, nos diversos momentos, inteiram-se mais variadamente de sentido, e, segundo as soluções rítmicas, se reembebem de um halo vivaz. Será, se dizer posso, uma língua menos ‘da lei’ que ‘da graça’; uma língua para homens muito objetivos, ou para poetas. Nem não é tudo. Também, e o quanto ninguém imagina, é uma língua in opere, fabulosamente em movimento, fabril, incoagulável, velozmente evolutiva, toda possibilidades, como se estivesse sempre em estado nascente, apta avante, revoltosa. Sem desfigurar-se, como um prestante e moderno mecanismo, todo tratável, ela aceita quaisquer aperfeiçoamentos estruturais e instrumentais, que, nas exaltadas arremetidas criadoras de uma experimentação contínua, os escritores lhe infligem, segundo as mais sutis ou volumosas intenções. Suas partes obedecem à arte. Deste ponto-de-vista, nenhuma outra haverá tão plástica e colaborante, sem inércia. Por sua própria natureza original, permite todas as caprichosas e ousadas manipulações da gênese inventiva individual. Praticamente ilimitada é a criação de neologismos, o verbum confingere. O intercambiar dos sufixos e das partículas verbais é universal: os radicais aí estão, à espera de um qualquer afixo, como os forames de um painel de mesa-telefônica, para os engates ad libitum. Possível, mesmo, é a engendra de sufixos novos, partindo de terminações singulares ou peregrinas de vocábulos. Vale é o valível. Imissões adúlteras não são ilegítimas. A seiva arcaica se redestila. Absorvem-se os ruralismos. Recapturam-se as esquivas florações da gíria. Entre si, as palavras armam um fecundo comércio. Molgável, moldável, digerente assim - e não me refiro em espécie só à língua literária - ,ela mesma se ultrapassa; como a arte deve ser, como é o espírito humano: faz e refaz suas formas. Sem cessar, dia a dia, cedendo à constante pressão da vida e da cultura, vai se desenrolando, se destorce, se enforja e forja, maleia-se, faz mó do monótono, vira dinâmica, vira agente, foge à esclerose torpe dos lugares comuns, escapa à viscosidade, à sonolência, à indigência; não se estatela. Seus escritores não deixam. Os felizes escritores húngaros usam e mais usam da tratabilidade daquele esquematismo opulento, de um aparelho de tanta liberdade. E não o praticam apenas nos casos de necessidade elementar, conforme o ‘Sunt novis rebus nova ponenda nomina’ ciceroniano. Nesse contínuo operatório, querem não menos as operações estéticas fantasistas. O que eles buscam, às inspirações, toda-a-vida, é a máxima expressividade, a mais ponta para penetrar a matéria; o jogo eficaz. São todos individualistas. Desde que o entenda, cada um pode e deseja criar sua ‘língua’ própria, seu vocabulário e sintaxe, seu ser escrito. Mais do que isso: cada escritor húngaro, na prática, quase que não pode deixar de ter essa língua própria, pessoal. O alcance disso é mágico. Com isso, está o espírito geral da gente, que ele invoca. E essa é tendência que não arrefece. Cada jornal, em Budapeste, é escrito em seu dialeto ‘da casa’, às vezes fora da linguagem culta corrente - diz Laczkó Géza; e ajunta: ‘Na vida de sociedade húngara não basta ter-se espírito; mas a forma lingüística do dito espirituoso tem também de ser espirituosa’. Será que - como se fosse ainda o guerreiro em movimento ou solitário pastor, nas estepes antigas do Pamir ou, depois, onde volga o Volga e dona o Don - em o versar de seu idioma o magiar ficou sempre nômade.”

Guima ainda dá uns exemplos de flexões com palavras húngaras, como o que se segue. Sente o drama:

megengedhetetlen: inadmissível. (minha palavra favorita em húngaro)
megengedhetetlenebb: mais inadmissível.
legmegengedhetetlenebb: o mais inadmissível.
legeslegmegengedhetetlenebb: o mais inadmissível de todos.
legeslegmegengedhetetlenebbekkel: com os mais inadmissíveis de todos.

E, finalmente, minha citação favorita dele em referência ao húngaro:

“(...) contam que Carlos V, que desde muito menino teve de estudar uma porção de idiomas, por quantas terras e povos em que reinar, costumava dizer que: o espanhol era para se falar com os reis, o italiano com a mulher amada, o francês com o amigo, o holandês com os serviçais, o alemão com os soldados, o latim com Deus, o húngaro... com o diabo.”

Nisso, ele parece concordar com o Chico Buarque. É um negócio de diabo pra cá, diabo pra lá, cheiro de enxofre nos banhos turcos que eu já to ficando com medo...

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Hmmmmmm... então foi daí que o "Xiquinho" se inspirou. Esperto ele, não?!

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  3. Está aqui o prefacio todo, ou só um trecho. Como nunca encontrei a obra, nunca consegui ler o prefácio. Se tiver, tem como escanear? Abraço.

    Eduardo ninguem@usa.com

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  4. Conheci um casal de húngaros, fugitivos da segunda grande guerra. Ouvia-os conversando em húngaro. Realmente era muito "sonorosa" a língua.

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