domingo, 19 de junho de 2011

“Subiu a construção como se fosse máquina”

Primeiramente, me desculpo por outra referência ao Chico Buarque. Mas entenda, ele é para este blog o equivalente ao que a Glória Perez foi ao meu blog da Índia, salvo as devidas e imensuráveis proporções entre caráter pessoal e feitos profissionais de ambos. Assim como Glória e seu fiel retrato da vida cotidiana dos indianos, com uma estetização legítima da riqueza material daquele povo, diga-se de passagem, o Chico é a referência máxima brasileira a Budapeste. O seu livro, criativamente intitulado ‘’Budapeste’’, é praticamente uma estrela guia para os visitantes incautos por esta essa cidade.

Mas eu divago...

Voltando ao assunto que motiva este post, Budapeste parece um grande canteiro de obras. Verdade seja dita, a cidade está caindo aos pedaços. No entanto, esse ‘’que’’ de ruína urbana é um dos fatores essenciais ao charme da cidade. E, como ja á apontei antes, Budapeste é tipo uma Sofia Loren: velha sim, mas ainda cheia de ecantos.

Com a construção da linha 4 do metrô, a cidade esta uma zona. Mas as obras se extendem também por parques, igrejas, pontes, etc, tornando a locomoção nessas áreas um tanto quanto caótica. Isso sem falar nos desvios estéticos provocados pelas máquinas e entulhos espalhados pela cidade. Dá uma baita pena andar naquela avenidas históricas cobertas com tapumes e redes de proteção verde.

Como tudo na vida tem dois lados, a boa notícia é que a nova linha do metrô vai passar do lado de casa. A má é que vai demorar mais uns 4 anos para as obras terminarem e, até lá, Budapeste estará no meu passado. Pelo menos vai ficar pronto antes do Itaquerão...

‘’Ergueu no patamar quatro paredes sólidas
Tijolo com tijolo num desenho mágico’’

Desculpem, não resisto.


*update: meu karma ruim continua a me perseguir. Adivinha qual novela brasileira está passando na tv húngara??? Dica: não é Escrava Isaura. Sim, claro, Caminho das Índias!!! Arebaba, tô achando que no final das contas eu deveria ter largado de frescura ocidental e ter me purificado no Ganges...

sexta-feira, 10 de junho de 2011

o húngaro de Guimarães Rosa

Eu sei que já fiz um post exclusivamente destinado a apontar a impossibilidade da língua húngara ser professada por qualquer estrangeiro dada a sua complexidade, estranheza e ininteligibilidade (rááá, agora quero ver algum húngaro falar essa última palavra! Doce vingança...)

No entanto, há pouco chegou a meu conhecimento um livro chamado Antologia do Conto Húngaro escrito por Paulo Rónai, falecido escritor nascido na Hungria e radicado no Brasil. O livro traz uma seleção de contos de escritores húngaros traduzidos para o português. Não tive a oportunidade de lê-lo até mesmo porquê creio que seja um tanto quanto difícil encontrá-lo por aqui em se tratando de um livro em português.

Mas o que chama a atenção desse livro é seu prefácio escrito pelo James Joyce tupiniquin, Guimarães Rosa. Inteligente pra dedéu, ele estudou um catatau de línguas.

Falava, segundo o próprio: português, alemão, francês, inglês, espanhol, italiano, esperanto, um pouco de russo. Lia sueco, holandês, latim e um pouco de grego. Entendia alguns dialetos alemães e tinha estudado a gramática do húngaro, do árabe, do sânscrito, do lituano, do polonês, do tupi, do hebraico, do japonês, do tcheco, do finlandês e do dinamarquês. É mole?

Bom, no supracitado prefácio, Guimarães Rosa se derrete em elogios ao idioma magiar. Vai aqui a transcrição. É grande e complicada, eu até pensei em encurtá-la, editá-la, mas cheguei à conclusão que seria uma falta de respeito, para dizer o mínimo, em se tratando de um texto tão fodásticamente articulado por um escritor tão fodásticamente foda:

“Disse já que o húngaro, por seu rico registro de vogais - que a caracterizam imediatamente - e da prevalência das claras sobre as surdas, dá-se como uma das línguas mais sonoras, musicais, em seu vozeio. Sonorosa, se bem que de ritmo fundamental muito enérgico, nela as seqüências de inflexões naturalmente modulam e fácil melodiam. De si concretizante, figurativa, imagista, encerra copiosa quantidade de onomatopéias. Sua gramática, parca, põe garra mais curta que a da emoção. Suas palavras nem sempre se fecham na racional fixidez conceitual explícita, na rigidez denotativa, antes guardam sob o significado uma ativa carga potencial, rudimentar, com o que, nos diversos momentos, inteiram-se mais variadamente de sentido, e, segundo as soluções rítmicas, se reembebem de um halo vivaz. Será, se dizer posso, uma língua menos ‘da lei’ que ‘da graça’; uma língua para homens muito objetivos, ou para poetas. Nem não é tudo. Também, e o quanto ninguém imagina, é uma língua in opere, fabulosamente em movimento, fabril, incoagulável, velozmente evolutiva, toda possibilidades, como se estivesse sempre em estado nascente, apta avante, revoltosa. Sem desfigurar-se, como um prestante e moderno mecanismo, todo tratável, ela aceita quaisquer aperfeiçoamentos estruturais e instrumentais, que, nas exaltadas arremetidas criadoras de uma experimentação contínua, os escritores lhe infligem, segundo as mais sutis ou volumosas intenções. Suas partes obedecem à arte. Deste ponto-de-vista, nenhuma outra haverá tão plástica e colaborante, sem inércia. Por sua própria natureza original, permite todas as caprichosas e ousadas manipulações da gênese inventiva individual. Praticamente ilimitada é a criação de neologismos, o verbum confingere. O intercambiar dos sufixos e das partículas verbais é universal: os radicais aí estão, à espera de um qualquer afixo, como os forames de um painel de mesa-telefônica, para os engates ad libitum. Possível, mesmo, é a engendra de sufixos novos, partindo de terminações singulares ou peregrinas de vocábulos. Vale é o valível. Imissões adúlteras não são ilegítimas. A seiva arcaica se redestila. Absorvem-se os ruralismos. Recapturam-se as esquivas florações da gíria. Entre si, as palavras armam um fecundo comércio. Molgável, moldável, digerente assim - e não me refiro em espécie só à língua literária - ,ela mesma se ultrapassa; como a arte deve ser, como é o espírito humano: faz e refaz suas formas. Sem cessar, dia a dia, cedendo à constante pressão da vida e da cultura, vai se desenrolando, se destorce, se enforja e forja, maleia-se, faz mó do monótono, vira dinâmica, vira agente, foge à esclerose torpe dos lugares comuns, escapa à viscosidade, à sonolência, à indigência; não se estatela. Seus escritores não deixam. Os felizes escritores húngaros usam e mais usam da tratabilidade daquele esquematismo opulento, de um aparelho de tanta liberdade. E não o praticam apenas nos casos de necessidade elementar, conforme o ‘Sunt novis rebus nova ponenda nomina’ ciceroniano. Nesse contínuo operatório, querem não menos as operações estéticas fantasistas. O que eles buscam, às inspirações, toda-a-vida, é a máxima expressividade, a mais ponta para penetrar a matéria; o jogo eficaz. São todos individualistas. Desde que o entenda, cada um pode e deseja criar sua ‘língua’ própria, seu vocabulário e sintaxe, seu ser escrito. Mais do que isso: cada escritor húngaro, na prática, quase que não pode deixar de ter essa língua própria, pessoal. O alcance disso é mágico. Com isso, está o espírito geral da gente, que ele invoca. E essa é tendência que não arrefece. Cada jornal, em Budapeste, é escrito em seu dialeto ‘da casa’, às vezes fora da linguagem culta corrente - diz Laczkó Géza; e ajunta: ‘Na vida de sociedade húngara não basta ter-se espírito; mas a forma lingüística do dito espirituoso tem também de ser espirituosa’. Será que - como se fosse ainda o guerreiro em movimento ou solitário pastor, nas estepes antigas do Pamir ou, depois, onde volga o Volga e dona o Don - em o versar de seu idioma o magiar ficou sempre nômade.”

Guima ainda dá uns exemplos de flexões com palavras húngaras, como o que se segue. Sente o drama:

megengedhetetlen: inadmissível. (minha palavra favorita em húngaro)
megengedhetetlenebb: mais inadmissível.
legmegengedhetetlenebb: o mais inadmissível.
legeslegmegengedhetetlenebb: o mais inadmissível de todos.
legeslegmegengedhetetlenebbekkel: com os mais inadmissíveis de todos.

E, finalmente, minha citação favorita dele em referência ao húngaro:

“(...) contam que Carlos V, que desde muito menino teve de estudar uma porção de idiomas, por quantas terras e povos em que reinar, costumava dizer que: o espanhol era para se falar com os reis, o italiano com a mulher amada, o francês com o amigo, o holandês com os serviçais, o alemão com os soldados, o latim com Deus, o húngaro... com o diabo.”

Nisso, ele parece concordar com o Chico Buarque. É um negócio de diabo pra cá, diabo pra lá, cheiro de enxofre nos banhos turcos que eu já to ficando com medo...